segunda-feira, 25 de abril de 2005

o ‘teu’ corpo

ora ele há coisas que realmente são uma grande coincidência…

andava eu há um determinado tempo a pensar em escrever sobre uma determinada sugestão mental que um certo artigo de publicidade me suscitava, e estava cada vez mais decidido a transpor para a escrita essas questões, até que hoje dou por mim a ler o artigo da isabel stillwell, na notícias magazine de hoje, 24 de Abril de 2005, que por vias travessas e próximas me forçam claramente a não deixar de escrever sobre o assunto.

no dito artigo, intitulado ‘dura comparação com as moças dos anúncios’, isabel stillwell tem um assombro de realidade e toma consciência de que ‘não vamos para mais novos, nem para mais magros’, afirmando-o neste contexto de aproximação do verão, em que em tudo quanto é lado, somos invadidos pelas campanhas publicitárias que apelam à preparação do corpo para os ditames da exibição da forma do corpo, e a procura de atingir esses ‘modelos de virtude’ que surgem em tudo quanto é anúncio de televisão, de jornais, revistas, mupis, outdoors, etc.

essas coisas que ‘de todos os lados nos cercam e nos parecem impor a urgência de sermos aquilo que não somos, de parecermos aquilo que não parecemos, de usarmos uma roupa de geometria impossível sobre um corpo que temos a obrigação de conservar imune à passagem do tempo’…

e agora, perguntar-me-iam (como se eu estivesse diante de uma plateia ou audiência, ou à conversa com alguém), mas como é que isto se relaciona com aquilo que andavas para aí a matutar?

e eu explico:

defronte do meu local de trabalho existe uma farmácia, que até há bem pouco tempo ostentava na sua montra um enorme placard publicitário a um desses produtos cosméticos, adelgaçante, reafirmante, anti-celulite, e o mais que eu sei lá. mas o que tinha esse placard de interessante? ora tinha precisamente como ‘cabeça de cartaz’ uma dessas ‘moças novas’ de que fala a isabel stillwell, fotografada de costas, e realçando o seu corpo desde a parte inferior das costas às coxas, demonstrando as suas formas firmes e mostrando tudo no sítio, ou muito próximo daquilo que serão as ‘medidas anatómicas ideais do modelo da beleza contemporânea’.

mas o que tinha de tão sugestivo?

o que tinha de tão sugestivo, era realmente a sua extrema capacidade de atrair a minha atenção para ele, mas por vias indirectas. eu explico melhor. sempre que por ali passava, não conseguia deixar de o observar durante alguns segundos, mas o que eu via não era propriamente o dito cartaz, nem captava ao ínfimo pormenor as formas da dita ‘moça’. a minha mente buscava a imagem de uma figura feminina, outra, seja ela qual for, ou seja, olhando para o cartaz eu não via a modelo, mas antes visualizava um corpo inexistente, outro qualquer

não interessava, e não interessa, aquilo que são os ditames impostos pelo actual contexto social da forma modelo. o que quero dizer é que tinha ali defronte dos meus olhos uma sugestão próxima do modelo, mas que isso não me despertava nada de importante, nem de menos importante. digo mesmo que era nulo o interesse. na verdade, o especial dessa sugestão era mesmo a visualização de um corpo imaginário, com as suas formas próprias, com as suas especificidades, ora mais próximas, ora mais distantes desses modelos, ainda que sem definição de formas e proporções

o que importa mesmo, era realçar num corpo, cada ínfimo pormenor, cada curva, cada poro, cada sinal, cada borbulha, as tonalidades da pele, ora mais rosado aqui, ora menos ali, a sua temperatura, com as suas partes frias e as suas partes quentes, era essa cartografia mental que me assaltava, e que no fundo era associar todos esses pormenores à existência (ir)real de um corpo, e não o de um corpo que pode pertencer a qualquer pessoa indistintamente. ou seja, todos aqueles pormenores, que sejam passíveis de cartografar na mente, com todos os sentidos, de um corpo com determinadas formas, e que pertencem a um corpo particular e único que é ‘aquela’ pessoa, de quem se pode sentir a sua ausência, e a ausência do seu corpo.

numa perspectiva de não se sentir a ausência de uma qualquer companheira, de um qualquer corpo. sentir a ausência ‘daquela’ companheira, e ‘daquele’ corpo. que por sinal, muita boa gente não vive muito bem dentro dele, mas que é um corpo que se admira e que se adora percorrer cada ínfimo pormenor dele.

não me interessam nada esses ‘modelos de virtudes’, o que me interessa é ‘um’ corpo, com os seus ‘defeitos’ e ‘imperfeições’, mas que são precisamente esses defeitos e imperfeições que lhe dão a sua personalidade, e são esses defeitos e imperfeições que não se encontram em mais nenhum, porque é único. e são esses pormenores únicos que me fazem ‘amar’ ‘um’ corpo e quem mora nele…